Aula 05 - Mitte : Temas integrados

Como dito anteriormente, vários estudiosos da teologia bíblica creem que existe um tema central unificador da teologia do Antigo Testamento (um Mitte) que costura as diversas partes do texto, apresentando, pelo menos, uma ideia teológica geral. Outros entendem que esse Mitte estende-se do AT para o NT. Terminamos nossa aula anterior afirmando que o nosso curso adotaria um Mitte com três temas integrados: Reino \/ Pacto \/ Mediador. Nessa aula vamos discutir cada um desses temas integrados.

Reino

O Reino é o primeiro dos três conceitos que estudaremos. Literalmente, a frase "Reino de Deus" nunca aparece em nossas traduções do Antigo Testamento. A sua realidade, entretanto, é marcante por toda a Escritura. [1] Não é porque a frase não aparece que o conceito deixa de existir. Em lugar algum das Escrituras você encontra o termo trindade, mas sabemos que a Trindade é um conceito fundamental que permeia toda a Escritura. O conceito do Reino de Deus é um conceito chave para compreendermos a Bíblia. Sem ele não podemos compreender corretamente a relação do próprio Deus com sua criação. Veja a explicação de Van Groningen sobre a natureza do Reino:

O Resultado da Criação: O Reino Cósmico

O cosmos é o reino; especificamente, o reino cósmico. O termo reino pode ser entendido como referindo-se a um ou mais aspectos envolvidos no conceito ou a todos eles. Um reino envolve uma pessoa, um rei ou rainha que tenha posição de autoridade suprema.

Também envolve o exercício efetivo da autoridade real (reinar) e pode se referir à cidade, palácio ou trono onde a autoridade é exercida e de onde é emitida. Finalmente, o termo "reino" refere-se ao domínio ou território sobre o qual o regente exerce sua autoridade real.

Embora seja verdade que o termo não aparece em Gênesis 1-2, a ideia, particularmente a de reino\/domínio, certamente aparece. Os salmistas confirmaram isso quando cantaram sobre Yahweh reinando, seu trono desde a antiguidade, e de um mundo firmemente estabelecido (Sl 93.1-2). Davi cantou sobre o trono de Yahweh estabelecido nos céus e seu reino governando sobre tudo (Sl 103.19). Ele cantou sobre o reinado e reino de Yahweh, referindo-se a todo o cosmos, quando exaltou ao "meu Deus e Rei" (Sl 145.1) cujo reino é para sempre e cujo reinado resiste por todas as gerações (Sl 145.13). Os salmistas puderam cantar assim e os profetas anunciaram repetidamente que Deus era o Governador (rei) soberano e eterno sobre todo o universo, porque Deus tinha se revelado assim quando criou o cosmos.

Assim sendo, não há nada no universo que esteja fora do domínio do Deus criador. Pergunto, o que é que pode existir fora do domínio do criador? Seriam as forças do mal, Satanás e seus seguidores? O próprio inferno? Não, absolutamente nada está fora do domínio de Deus! Deus é o rei soberano sobre todas as coisas e chamamos de Reino de Deus esse domínio que Ele exerce sobre tudo e todos.

Observe, ainda, o conceito abaixo:

  • Não é fácil definir o Reino porque o próprio Senhor Jesus não o fez na sua pregação. Há apenas inferências da significação do Reino. Paulo disse que o Reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, alegria e paz no Espírito Santo (Rm 14.17), mas isto não é uma definição.

  • O entendimento do Reino de Deus mais aceito é aquele que é colocado nestes termos: O reino de Deus é, antes, um modo de Deus governar; é o exercício de Suas regras, antes do que um território sobre o qual Ele rege.

  • O Reino de Deus pode, ocasionalmente, ter conotações espaciais, quando se refere à ordem das cousas ou a um estado de paz e alegria, mas o reino de Deus está sempre ligado especialmente ao Seu povo.

  • O Reino de Deus deve ser entendido como o governo de Deus ativo na história humana. Quando dizemos que Deus é o Senhor da história, isto quer dizer que Ele está executando Seus planos nela. Isto hoje Ele faz através de Jesus Cristo, quando na história humana Ele executa o propósito da redenção do pecador, sujeitando todas as cousas debaixo do Seu poder, inclusive o próprio Satanás, até que a consumação do Reino se dê no novo céu e na nova terra.

  • O Reino de Deus não deve ser entendido simplesmente como a salvação de alguns indivíduos, ou como algo efetuado simplesmente nos corações dos homens. O Reino de Deus é mais abrangente do que isso. Ele é o governo de Deus sobre toda a criação. Deus é o Rei e age na história dos homens executando os Seus propósitos de antemão concebidos. Isto Deus faz hoje debaixo da administração de Jesus Cristo. (Heber Carlos de Campos, A Doutrina do Reino de Deus, CPAJ)

O conceito de reino é às vezes complicado de se entender porque em nenhum lugar das Escrituras encontramos uma definição absoluta de Reino. Os textos das Escrituras que nos ensinam sobre o Reino normalmente tratam de aspectos do Reino, diferentes facetas desta realidade bíblica.

Observe algumas dessas facetas abaixo:

Versiculo Pergunta
Mt 4:17 Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus. Em que sentido o reino pode estar próximo e não presente?
Mt 4:23 Percorria Jesus toda a Galiléia , ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. O reino é uma mensagem?
Mt 5:3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reinodos céus. Como alguém pode possuir o reino?
Mt 6:10 venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; O reino pode estar no céu e não na terra?
Mt 6:13 não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém! Qual a relação entre o reino, o poder, a glória e a eternidade?
Mt 6:33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Seriam os valores do reino?
Mt 8:11 Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Alguns já estão no reino.
Mt 11:12 Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele. Como pode o reino ser tomado por esforço? Como alguém que se esforça se apodera dele?
Mt 12:28 Se, porém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós. Aqui parece que o reino já está presente.

Caso você tenha um software de bíblia, faça uma busca na palavra REINO e dê uma rápida olhada nos resultados. [1] Leia os textos abaixo e relacione o conceito de Reino com a criação e observe como os escritores bíblicos viam a extensão do Reino (não se esqueça do contexto de cada um desses versos):

a. Salmo 47.9 b. Salmo 93.1 c. Salmo 96.10 d. Salmo 97.1 e. Salmo 99.1 f. Salmo 146.10 g. Isaías 52.7 h. Daniel 7 e 11 i. Mateus 3.2 j. Mateus 4.17 k. Atos 28.31 l. Apocalipse 1.9

Pacto

(O texto abaixo é uma adaptação do texto que se encontra em Fides Reformata 3\/1 (1998), Uma breve Introdução ao Estudo do Pacto, Mauro Meister) O substantivo pacto significa, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,(31)"ajuste", "convenção" ou "contrato". Estes três substantivos são também usados para definir o significado do substantivo aliança. Diferentes versões da Bíblia em português usam os substantivos pacto, aliança, acordo e concerto para traduzir o substantivo hebraico berith que aparece cerca de 290 vezes no Antigo Testamento. (32) Para todos esses sinônimos a ideia básica que encontramos é a de união entre duas partes, um pacto ou acordo bilateral. No entanto, até mesmo a etimologia do substantivo é grandemente discutida. Basta passar os olhos por alguns dicionários de teologia ou livros que tratem especificamente do assunto para verificar que há, entre os estudiosos, grande discordância. As posições mais defendidas são:

  1. A de que berith é derivada do assírio birtu, que significa "laço", "vínculo";

  2. A de que o substantivo tem origem na raiz de barah, "comer," que aparece poucas vezes no Antigo Testamento (2 Sm 3.35; 12.17; 13.5; 13.6; 13.10; Lm 4.10), e está relacionado com a cerimônia que selava um acordo ou relacionamento entre partes;

  3. A de que o substantivo está ligado à preposição bein "entre."(33) De todas estas a primeira posição é a mais aceita entre os estudiosos do Antigo Testamento. (34)

Da própria dificuldade em se estabelecer a origem e significado do termo berith surgem as primeiras divisões entre aqueles que defendem a teologia pactual. Por exemplo, exatamente o que se quer dizer quando se fala em acordo? Isto implica em que as alianças bíblicas sejam "bilaterais"? Não se pode negar que a ideia de pacto traga consigo, no seu sentido mais natural, a bilateralidade, ou seja, duas partes são envolvidas em um pacto. Vários pactos acontecem entre duas pessoas, nações ou grupos na narrativa bíblica (ver Js 9.15; 1 Sm 20.16; 2 Sm 3.12-21; 5.1-3; 1 Rs 5.12); em certos casos um pacto é feito para resolver uma disputa entre partes (Gn 21.22-32; 26.26-33; 31.43-54).

Centenas de vezes o substantivo aparece no contexto de um pacto entre Deus e seres humanos. Como, nesse contexto, entender a bilateralidade? Um pacto implica sempre em igualdade entre as partes? Certamente que não. A bilateralidade, no contexto do pacto entre Deus e homens, implica tão somente em que duas partes estão envolvidas, mas não que exista a igualdade entre essas partes. Teólogos têm chamado esse tipo de aliança "unilateral" de "monergista," ou seja, iniciada e garantida por Deus nos seus termos. Portanto, estamos falando de uma aliança que não envolve um acordo de duas partes,(35) na qual não existe negociação de direitos e obrigações. Nesse sentido a aliança divino-humana é unilateral. É um compromisso feito pela iniciativa de Deus com relação à sua criação. O serhumano é um receptor da aliança divina. Isso se torna evidente no texto de Gênesis 17.2, que é traduzido para o português como "Farei uma aliança entre mim e ti" onde o verbo traduzido como "fazer" tem por raiz no hebraico o verbo "dar" (nathan), que nos daria, se traduzido literalmente, uma sentença sem sentido. No entanto, a força do argumento está no fato de que a raiz do verbo traduzido por "fazer" em português envolve algo que é dado: um pacto. O texto não reflete um acordo de duas partes iguais, com os mesmos direitos.

Esse tipo de pacto não é algo sem precedentes na história. Ele é ilustrado pelos pactos do antigo Oriente Próximo entre conquistadores e conquistados, reis e vassalos. Nesses casos,os conquistados, quando entravam em pacto com os conquistadores, não tinham o direito de propor qualquer coisa nos termos do pacto. Este tipo de pacto pressupõe a figura de uma parte "soberana". Um dos lados tem a vantagem do domínio e se propõe a cumprir um determinado papel; o outro, tendo também um papel a cumprir, se submete às exigências pactuais. No pacto divino-humano encontramos a relação criador-criatura, rei soberano-servo. Vários paralelos entre os pactos bíblicos e os pactos do antigo Oriente Próximo foram cuidadosamente descritos por Meredith Kline e servem como uma valiosa ajuda para entendermos os termos e significado do pacto entre Deus e a humanidade.(36)

Um dos exemplos dados por Kline é a narrativa em Gênesis 15 do pacto com Abrão. Nos primeiros versículos o texto narra que Iavé aparece a Abrão e faz com ele uma aliança. Depois de colocados os termos da aliança, o texto narra nos versos 13-17 o desfecho:

Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice. Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus. E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços.

Todas as promessas são feitas por Deus a Abrão, do Rei soberano para o vassalo, do criador para a criatura. O ritual apresentado no versículo 17, em que Deus passa por entre os pedaços dos animais, é uma característica da forma como os pactos do antigo Oriente Próximo, entre soberanos e vassalos, eram selados. Teriam os autores bíblicos "tomado emprestado" o conceito antigo de pacto e aplicado à teologia? Essa é uma posição defendida por vários estudiosos. No entanto, como veremos mais adiante, penso que existam razões suficientes para se crer na ideia oposta a essa: os povos antigos, ao formularem seu modo de relacionamento social, refletiam a forma que o próprio Deus criador havia estabelecido para se relacionar com sua criatura.

A diferença fundamental entre os pactos humanos e o pacto divino-humano encontra-se na motivação do soberano Criador, que se propôs a criar e sustentar a sua criação, estabelecendo assim um vínculo que, segundo a própria Escritura, só pode ser um vínculo de amor.

O conceito de pacto, portanto, é um conceito que deve ser entendido dentro dos vários contextos onde aparece. Várias nuanças do pacto são dadas através dos verbos que acompanham o substantivo. Portanto, quando se trata do pacto divino-humano pode-se dizer que o pacto é um vínculo\/elo de amor, iniciado e administrado pelo Deus triúno com a sua criação, representada pelos nossos pais.

Pacto e Criação

O substantivo berith (pacto) não aparece senão no capítulo 6 de Gênesis, estando,portanto, ausente da narrativa da criação e da queda (Gn 1-3). Como, então, falar de um "pacto da criação" se o termo sequer aparece na narrativa? Que evidências podem ser apresentadas? Partindo-se do conceito da aliança como elo, laço, vínculo e relacionamento de amor, iniciado e administrado por Deus, verificamos que essa ideia é intrínseca na narrativa da criação. Destacamos, primeiramente, que ao criar Deus manteve um relacionamento com sua criação. Ele não só tinha o governo absoluto sobre ela, mas também mantinha tudo o que havia criado. De um dia da criação para o outro (dia um para o dia dois, dia dois para o dia três, etc.), Deus sustentava aquilo que, aparentemente, não podia ter auto sustentação (pelo menos do ponto de vista do que chamamos de leis naturais). Assim, até que a criação estivesse completa, Deus estava sustentando de forma extraordinária a sua criação. Depois que ele terminou de fazer tudo o que havia proposto, a criação, com suas leis naturais, passou a se manter. Mesmo assim, sabemos que ele é o "sustentador de todas as coisas."

Em segundo lugar, ao criar o ser humano (Gn 1.26-28), Deus o criou à sua "imagem e semelhança". Incluídas nessa imagem e semelhança estão as habilidades de comunicação e relacionamento (e suas implicações como pensar, obedecer, discernir, e fazer opções), como o texto bíblico deixa bem claro a partir do segundo capítulo de Gênesis. Essa imagem e semelhança permite que o homem criado se relacione com o Criador. Temos, portanto, presente no relato da criação, a possibilidade do desenvolvimento de relacionamentos.

Em terceiro lugar, aprendemos da narrativa da criação que Deus deu responsabilidades ao ser humano (macho e fêmea). Entre elas se encontram obrigações de cuidar e desenvolver o que Deus havia colocado em suas mãos:

Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar... Havendo, pois, o SENHOR Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles (Gn 2.15,19).

Ao casal são dadas as responsabilidades de procriação, multiplicação e domínio refletidas nas bênçãos dadas a eles. Em quarto lugar, verificamos que nesse relacionamento existe a verbalização clara da parte de Deus do que seriam as bênçãos e as possíveis maldições do pacto. Bênçãos e maldições são parte integrante dos pactos entre soberanos e vassalos no antigo Oriente Próximo.(37)

E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pe la terra (Gn 1.28). E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás (Gn 2.16-17).

As bênçãos são dadas ao homem e expressas em forma imperativa no verso 28: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei, sujeitai, dominai. Em todos esses exemplos percebemos que o Criador está expressando à sua criatura mandatos em três áreas de relacionamento: espiritual,social e cultural. (38)

Essas características (soberania, sustento, relacionamento, responsabilidade, bênçãos e maldições) formam o conjunto de elementos do chamado pacto da criação.

Outras evidências levantadas para o pacto da criação são os textos de Oséias 6.7; Jeremias 33.20, 25, e Gênesis 6.18. Sem muitos detalhes exegéticos, exponho abaixo as razões principais porque se pensa que esses textos falam de um pacto da criação. Oséias 6.7 fala da transgressão de Adão contra o pacto: "Mas eles transgrediram a aliança, como Adão; eles se portaram aleivosamente contra mim." Uma leitura simples e direta do texto reflete que havia um pacto entre Deus e Adão, portanto, um pacto pré-queda, que pode ser tido como o pacto da criação. Essa leitura reflete o pressuposto de que os escritores bíblicos tinham conhecimento de outros escritos bíblicos, anteriores e contemporâneos.

Oséias estaria,portanto, falando do pacto da criação. Para alguns estudiosos, entretanto, isto não é admissível, considerando vários pressupostos diferentes do exposto acima.

Eles adotam uma leitura diferente do texto, como a Bíblia na Linguagem de Hoje (39):

"Mas na cidade de Adã o meu povo quebrou a aliança que fiz com ele e ali foi infiel a mim."

De fato, existe uma cidade bíblica com esse nome (Js 3.16). No entanto, para que o texto de Oséias 6.7 seja traduzido como a Bíblia na Linguagem de Hoje sugere, é necessário que se faça uma emenda do texto hebraico, substituindo a preposição "como" por "em," sem que haja qualquer evidência da necessidade dessa troca. (40) Ainda mais, não se sabe de um pecado cometido pelo povo de Israel ao passar por aquele lugar que fosse registrado e então mencionado pelo profeta. Assim, esta proposta de leitura não acha qualquer argumento sustentável. Outra possível leitura provém da tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta (LXX), que traduz a expressão "como Adão" por "como homens."(41) Nesse caso, estaria implícito um pacto entre Deus e a humanidade.

O segundo texto, de Jeremias 33.20-21, faz referência a uma aliança com o dia e aliança com a noite:

Assim diz o SENHOR: Se puderdes invalidar a minha aliança com o dia e a minha aliança com a noite, de tal modo que não haja nem dia nem noite a seu tempo, poder-se-á também invalidar a minha aliança com Davi, meu servo, para que não tenha filho que reine no seu trono; como também com os levitas sacerdotes, meus ministros.

Nos versos 25-26 aparece a expressão "a minha aliança com o dia e com a noite."

Comentaristas apontam para duas situações às quais Jeremias pode estar se referindo nesses versos: à criação ou ao pacto com Noé, onde Deus promete manter a ordem fixa das estações, dia e noite (Gn 8.22). Robertson explica, convincentemente, que o texto paralelo de Jeremias 31.35-36 confirma a primeira opção (criação) como melhor(42).

Assim diz o SENHOR, que dá o sol para a luz do dia e as leis fixas à lua e às estrelas para a luz da noite, que agita o mar e faz bramir as suas ondas; SENHOR dos Exércitos é o seu nome. Se falharem estas leis fixas diante de mim, diz o SENHOR, deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de mim para sempre.

Assim, Jeremias estaria, ao falar do pacto com a casa de Israel e com Davi, refletindo o fundamento do pacto de Deus com a criação. Da mesma forma que o pacto estabelecido por Deus com a criação, "a aliança com o dia e com a noite," não pode ser invalidada, o pacto com Davi tem que ser e será mantido.

A tradução de Gênesis 6.18 é uma terceira evidência para se confirmar o pacto da criação.(43)
O texto da versão portuguesa Revista e Atualizada diz:
"Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos," confirmando a leitura da maioria das traduções em várias línguas. No entanto, o verbo traduzido como "estabelecerei," no hebraico pode ser traduzido como "continuar" ou "confirmar," a exemplo de Gênesis 26.3: "habita nela, e serei contigo e te abençoarei; porque a ti e a tua descendência darei todas estas terras e confirmarei o juramento que fiz a Abraão, teu pai."(44) Se traduzido dessa forma, nos casos em que o texto português fala "estabelecerei," o texto traria "confirmarei":

Contigo, porém, confirmarei a minha aliança; entra rás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos" (Gn 6.18).

Eis que confirmo a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da terra. Confirmarei minha aliança convosco: não será mais destruída toda carne por águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra (Gn 9.9-11).

Dessa forma, Deus estaria confirmando ou continuando uma aliança com Noé, uma aliança anteriormente estabelecida, esta só podendo ser a aliança ou pacto da criação.

Mediador

A palavra mediador significa, normalmente, aquele que faz a união de duas partes. Mas existe também a conotação de representante. É nesse sentido que usamos a palavra aqui. Adão e Eva foram criados na posição de mediadores, representantes do Criador diante da criação. Como tal eles tinham privilégios e responsabilidades para com o Criador e a criação. Van Groningen usa o termo vice gerentes para designar essa posição de Adão e Eva. É na qualidade de mediador que Adão pecou, e como representante de toda a raça humana, todos pecaram. É por isto que Cristo é chamado de segundo Adão. Deus Pai envia o Filho como um novo mediador, um novo representante, que segundo o apóstolo Paulo, Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem. (1 Tm 2:5)

Cristo representa o cristão diante do Pai em todas as áreas. Não fosse pela atuação dele não teríamos justificação e não teríamos vida abundante. Nos restaria apenas receber a maldição do pacto da criação, a morte em todos os níveis.Porém, sendo Cristo o representante dos eleitos em todas as áreas da existência, recebemos vida abundante.

Na próxima aula, ao tratarmos dos mandatos do pacto da criação, entenderemos com maior clareza o papel mediatorial de Adão e Eva.

Implicações práticas

Ler as Escrituras tendo em mente estes três temas (Reino, Pacto e Mediador) nos ajudam a compreender a unidade da revelação de Deus e associa-la ao nosso contexto. Esses temas foram escolhidos não como um elemento facilitador da leitura do texto da Bíblia, mas porque são os três temas que se encontram em evidência no processo da revelação e consequentemente são o fator unificador. É claro que esta afirmação só poderá ser verificada com a minuciosa leitura e exegese do texto bíblico. Em suma, isto é Teologia Bíblica, a teologia da aliança!

results matching ""

    No results matching ""