Aula 04 - Esboçando a Teologia Bíblica
Terminamos a aula passada afirmando que o reino, o pacto e o mediador são os temas que interligam os Testamentos e os livros de cada um, mostrando a unidade essencial da revelação progressiva de Deus ao seu povo. Esse tema tríplice é o Mitte (centro unificador) adotado em nosso curso. Grande parte de nossas aulas será em torno da análise do Mitte e suas implicações nos diversos blocos e livros da Bíblia. Na próxima aula estudaremos as características de cada um desses temas integrados.Porém, antes dessa análise ainda se faz necessário determinar que metodologia seguiremos. Como abordar as Escrituras com esses temas?
Seria suficiente verificar tudo o que Bíblia fala sobre cada um deles econdensar esse ensino em três grandes capítulos? Ou seria melhor abordar cada livro da Bíblia para ver o que fala sobre esses temas? Ou ainda, analisar o desenvolvimento desses temas numa linha histórica?
Essas perguntas deverão ser respondidas abaixo, à medida em que analisamos diversas possíveis abordagens.Descrevo abaixo os métodos mais comuns usados na Teologia Bíblica e as vantagens e desvantagens de cada um.A base do material abaixo foi adaptada do livro de Grant Osborne e de um artigo, do mesmo autor, na Enciclopédia Histórico Teológica da Igreja Cristã (São Paulo: Vida Nova).
O Método Sintético (ou Temático)
Nessa abordagem temas teológicos são traçados através das camadas de material bíblico em relação aos vários períodos históricos. Isto pode ser feito de duas formas: 1. seguindo a abordagem da história da religião, que estuda as fontes e mudanças teológicas nos períodos estudados (grande parte dos teólogos bíblicos do AT); 2. simplesmente descrevendo os aspectos teológicos de diferentes autores sem grande preocupação em traçar linhas de continuidade entre eles (muitos teólogos na área do NT).
Esse método tende a enfatizar a unidade das Escrituras. No entanto, corre-se o risco de tornar o resultado artificial e subjetivo, uma vez que as diferentes categorias ou temas podem ser impostos da teologia ao texto ao invés de naturalmente serem percebidos nele. Até mesmo temas considerados universais como o pacto podem acabar sendo usados de forma indiscriminada, torcendo os dados bíblicos, ou mesmo ignorando-os, para que o resultado se encaixe em um determinado padrão.
O Método Analítico
O método analítico, seguido por George Ladd (Teologia do Novo Testamento) é o método que se preocupa em estudar as ênfases distintivas dos livros individuais da Bíblia e o desenvolvimento das tradições para verificar qual é a mensagem exclusiva de cada um. Daí temos os conceitos de “Teologia Paulina”, “Teologia Joanina” e etc. Essa proposta tem suas raízes naquele que é considerado o “pai” da teologia bíblica enquanto disciplina distinta da teologia sistemática, Johann Philipp Gabler, que em 1787, trabalhou pela primeira vez nesse tema: “Sobre a distinção apropriada entre Teologia Bíblica e Teologia Dogmática e os objetivos específicos de cada uma.”[1] (O texto está entre as leituras desta semana. A leitura NÃO é obrigatória). É a teologia bíblica do período pós-iluminista.
Esse método tenta evitar perigos que são comuns na tarefa da teologia, como a tendência de impor um determinado pensamento pré-concebido ao texto ou de canonizar determinados padrões de pensamento, como se os distintos autores dos livros canônicos não tivessem características que lhe são peculiares.
No entanto, os perigos desse método são notórios. Um deles é exatamente o de se perder de vista a unidade do pensamento bíblico, fazendo da teologia uma mera colagem de “teologias”. Não é incomum, em determinados círculos, falar-se de teologias em contraposição a uma teologia bíblica. Outro perigo é a degeneração da abordagem em uma simples história da religião, preocupada em buscar as origens do pensamento teológico de um escritor ao invés de analisar os seus frutos e implicações como Palavra de Deus.
O Método da História da Religião
Este método tem semelhanças com o anterior, mas tem suas peculiaridades enquanto escola de pensamento. Seu proponente mais conhecido é Rudolf Bultmann. A proposta principal deste método é a de elucidar o desenvolvimento das ideias religiosas dentro de Israel e na Igreja primitiva. Na maioria dos casos os proponentes do método afirmam que as ideias religiosas são tomadas de empréstimo das culturas e religiões subjacentes do Antigo Oriente Próximo. Em geral, qualquer paralelo é tomado como uma “fonte” ou uma analogia para o pensamento religioso conforme descrito no AT e NT. Dentro dessa perspectiva a história da religião é o norteador da forma como se busca os dados teológicos e o existencialismo é o controlador da interpretação. Quando o estudioso adotando esse método se atém puramente aos dados bíblicos, pode-se obter algum resultado positivo. A tendência, no entanto, é a de rever os dados à luz dos dados extra-bíblicos e suas conclusões se tornam especulativas.
O Método da Crítica da Tradição
A crítica da tradição é, em certa medida, uma reação ao método da história da religião. Von Rad, um dos principais representantes dessa escola de pensamento, trabalha com os pressupostos de que a reconstrução histórica pura é impossível e o que de fato importa é o desenvolvimento da confissão da comunidade na qual os escritos canônicos apareceram. Para Von Rad, a tarefa da teologia bíblica é trabalhar com a “fórmula confessional” e não os eventos que originaram esta fórmula.
Nesse sentido, a história objetiva não é importante. O que importa é a “história da salvação,” que não tem conexão com a história real. Para tanto, o teólogo bíblico precisa trabalhar com as teorias especulativas do desenvolvimento das tradições ou comunidades (para fugir da especulação histórica trabalha-se com a especulação da tradição).
Consequentemente, para Von Rad, não existe um princípio normativo de interpretação. O AT contém uma série de confissões religiosas de Israel e o NT uma série de interpretações destas confissões. A Escrituras se resumem a isto!
O Método Cristológico
Esse é um ponto de certa forma “crítico” dentro de nossa definição. Crítico porque a tendência “evangélica” é a de fazer uma leitura cristológica do Antigo Testamento. De acordo com os proponentes dessa leitura, devemos interpretar cada parte do AT à luz do evento de Cristo. Até mesmo Karl Barth propõe esta leitura.
Em certo sentido, essa leitura representa um cuidado contra o método da história da religião e a desvinculação entre a mensagem do AT e NT que é produzida, por exemplo, pelo método analítico ou história da tradição. Por outro lado, existem grandes perigos em uma leitura cristológica. O primeiro deles é exatamente a alegorização do AT para que os textos possam ser lidos de acordo com o NT (por exemplo, a tentativa de se ler a relação de Cristo e a Igreja no livro de Cantares de Salomão). De certa forma perde-se a noção do progresso da revelação e sacrifica-se a mensagem do AT em função do NT.
Que toda a Escritura aponta para Cristo é de fato o que cremos. Como, porém, isto acontece, é o que deve ser bem esclarecido. Devemos partir do pressuposto que antes do advento de Cristo o AT era incompreensível aos seus leitores? Creio que não. Ainda que o AT seja promessa e o NT o cumprimento (essa é a proposta do Mitte – centro unificador - de Walter Kaiser), existe uma mensagem no AT que era compreendida pelos leitores e receptores da revelação naquele período, a saber, a vinda do Messias e todas as suas implicações. Que o NT nos esclarece pontos obscuros da mensagem do AT também é parte do que cremos, mas na aplicação do nosso método hermenêutico devemos caminhar passo a passo, considerando a mensagem do AT no seu próprio contexto e não simplesmente ler a mensagem do NT nas páginas do AT.
O Método Confessional
Essa abordagem é a que considera a Bíblia como uma série de declarações de fé. Essa proposta desconsidera o aspecto histórico da revelação e a interpretação que devemos fazer da mesma.
O método confessional impõe ao texto categorias de pensamento. É relevante conquanto enfatiza a necessidade dos credos, mas é extremamente negativo no domínio que exerce sobre o texto bíblico. Ao contrário do que se possa pensar, vários estudiosos liberais e neo-ortodoxos fazem uso desse método (von Rad, Oscar Cullmann, Eissfeldt).
Um dos princípios que gera essa abordagem é a constatação de que é impossível ter uma aproximação neutra e só as comunidades originais podiam entender a teologia bíblica. Nossa proposta é que nos aproximemos, através do método gramático histórico, o máximo possível, da compreensão dos primeiros leitores e assim possamos entender a teologia bíblica.
Método Misto
Como vimos acima, cada um dos métodos possui algum ponto positivo. A combinação dos pontos positivos e o uso do texto bíblico como guia, com pressupostos claros, pode eliminar várias de suas dificuldades. É por este caminho que vamos trabalhar o nosso esboço bíblico teológico. Osborne propõe alguns critérios que devemos ter em mente aos quais acrescento meu pensamento e modifico abaixo:
Os dados na construção teológica devem refletir o pensamento individual de um autor assim como o gênero literário que é utilizado (sabedoria, o pensamento de Marcos ou Mateus, ou Rute).
Devemos trabalhar com a forma canônica final dos documentos (para evitar a reconstrução especulativa) e buscar o inter-relacionamento dos temas teológicos entre autores e livros da Bíblia.
Começar com o pensamento das obras e autores individualmente e depois traçar os temas à medida em que eles emergem naturalmente desses escritos e depois verificar os aspectos de unidade.
Descobrir os temas individuais e depois a sua unidade dinâmica e os aspectos múltiplos que os unem.
Trabalhar com o pressuposto de que os autores individuais conheciam, em certa medida, o pensamento de autores anteriores a eles, assim como aspectos do pensamento de seus contemporâneos.
Trabalhar com ambos os testamentos, enfatizando tanto a sua unidade como a diversidade.
Dessa forma estaremos aplicando os pontos positivos dos métodos acima. Aceitando como verdadeiras as perspectivas dos autores bíblicos (método confessional), procurando, porém, não deixar de lado a abordagem descritiva, que considera de maneira relevante o aspecto histórico e o desenvolvimento da revelação na história.
A Questão do Dispensacionalismo
O dispensacionalismo é uma forma de esboço bíblico teológico que merece uma pequena descrição por ser o método mais popular de interpretação das Escrituras. Sugiro a leitura do capítulo "Alianças ou Dispensações: Qual destas estrutura a Bíblia?" de Palmer O. Robertson, O Cristo dos Pactos (O texto está nas leituras desta semana).
A interpretação dispensacionalista é oposta à interpretação pactual. A literatura que popularizou o dispensacionalismo na sua forma mais básica foi a Bíblia Anotada de Scofield (1910) e a literatura dispensacionalista é representada hoje por autores como Ryrie, Dwight Pentecost, John McArthur, Charles Swindoll e Tim LaHaye.
O Seminário Teológico de Dallas é certamente o maior centro de divulgação desta teologia. É certo que a interpretação dispensacionalista moderna difere em muito da antiga interpretação d e Scofield. É importante observar que dispensacionalistas, ainda que em oposição à teologia Reformada pactual, são grandes aliados contra o liberalismo, modernismo e neo-ortodoxia (veja-se o exemplo de MacArthur).
O dispensacionalismo básico divide a história da salvação em sete dispensações (períodos), começando com a dispensação da inocência (veja a tabela acima). Mais recentemente já se fala em aliança edênica.
Um dos resultados mais problemáticos, e mais visível dessa forma de interpretação é a distinção entre diferentes propósitos de Deus através da história. No dispensacionalismo não se vê uma unidade de propósito no plano de Deus. Não se pode afirmar simplesmente que Deus trabalha para redimir um povo para si mesmo. Segundo o dispensacionalismo Deus tem um propósito para o Israel étnico e outro para a igreja! São dois propósitos distintos.
Robertson faz uma boa comparação do sistema dispensacionalista com o pactual.
Sistema Pactual
No sistema pactual afirmamos que a história da redenção é contínua e que a vinda do Messias é o cumprimento da promessa feita por Deus a Adão e Eva em Gênesis 3, no que chamamos de o proto-evangelho. O propósito de Deus na redenção é único: redimir um povopara si, sem a distinção entre Israel e a Igreja. A igreja é o verdadeiro Israel de Deus e Jesus Cristo, o Rei da aliança davídica, é o mesmo Rei e Senhor da Igreja. A Confissão de Fé de Westminster fala de duas dispensações, referindo-se à forma de administração do pacto da graça no período do AT e NT.
Para maior esclarecimento dessa relação, faça a leitura obrigatória, "Lei e Graça" (O texto está nas leituras desta semana.)
A proposta do nosso curso é pactual. O esquema abaixo esboça a ideia do progresso da revelação de Deus dentro do princípio pactual. A ideia abaixo não é de nos dar um "molde" para ler as Escrituras, mas é a reflexão do que cremos ser a estrutura da revelação conforme a encontramos nas Escrituras.