# Aula 09 - A queda.
A Queda
Esta aula é uma adaptação do capítulo 5 de Criação e Consumação.
Nesta aula, a atenção será focada em Gênesis 2.8-3.7 e na queda. O termo "queda" é a forma tradicional de se referir à tragédia que aconteceu no Éden. Queda, no entanto, não é um termo bíblico. Nas Escrituras, quando uma referência é feita ao que Adão e Eva fizeram e o que aconteceu, os termos usados são abar berît (quebra do pacto), 'amartia (pecado), thanatos (morte), paraptomati (transgressão) (Rm 5.12, 15; 1 Co 15.21). Uma referência deve ser feita ao caráter histórico das pessoas e eventos citados nesta passagem. Aludimos, anteriormente, ao fato de que não temos a opção de considerar Gênesis 2 como um poema artístico com símbolos e ilustrações imaginárias ou como um credo.
O mesmo deve ser dito de Gênesis 3.1-7. O próprio texto, assim como o resto das Escrituras, não dá evidências para estas opções. A passagem sob consideração não é mitológica; nem inclui elementos mitológicos. Não há como negar que ainda existiam no segundo século a.C, entre as nações do Oriente Próximo, estórias mitológicas ou épicos que falavam em origens cósmicas, atividades do mal e de um dilúvio. Não é aceitável, porém, dizer que Moisés dependeu destes para obter informações, temas e elementos literários. As diferenças em caráter histórico, meios literários de expressão e verdades teológicas são tamanhas que qualquer pessoa, comparando os relatos bíblicos e não bíblicos, compreende, de imediato e conclusivamente, a superioridade e singularidade do relato bíblico. A única conclusão que pode ser tirada é de que se existe uma relação, é a da fonte comum da qual a não bíblica tirou e alterou grosseiramente o original por razões cosmológicas, religiosas ou sociais.
Adão e Eva no Éden
O texto bíblico é específico quanto à origem do Éden: wayyitta yehwâ elohîm gan-be eden miggedem (Deus Yahweh plantou um jardim no Éden, ao leste). O lugar citado é considerado como sendo o Vale Mesopotâmico entre as partes mais baixas dos rios Tigre e Eufrates. Mais importante do que o lugar exato é o que se segue : wayyasem sam 'et-ha 'adam (e lá ele colocou o homem). O homem que o Deus Yahweh havia formado foi colocado no seu lugar no cosmos. O jardim era bem estabelecido; tinha todos os tipos de árvores para que Adão tivesse comida (Gn 1.29; 2.16). Tinha abundância de água (quatro nascentes).
Era bem suprido de recursos minerais (Gn 2.12). Era um lugar de beleza (Gn 2.9).O jardim do Éden era o lar do homem; visto que ele era uma pessoa real, portador da imagem de Deus e vice gerente pactual, o jardim era seu palácio e pátio real. Era o lugar em que o homem deveria cumprir o seu mandato cultural (Gn 2.15); que ele fez isto é evidenciado pelo fato de ter dado nome aos animais de acordo com a natureza deles. O Éden foi o domínio real do homem, era seu reino. Este palácio e reino deveria ser também o lugar de comunhão com Yahweh e com a ajudadora que Yahweh lhe havia dado. Era para ser um local espiritual e social. Era o lugar onde o casamento e a vida familiar chegariam a uma expressão rica. De fato, era o cenário para uma vida pactual enriquecedora e completa.
O jardim do Éden era, também, o lugar do conhecimento e da vida. Estes dois aspectos foram representados pelas duas árvores que Yahweh destacou. A árvore da vida, plantada no meio do jardim (Gn 2.9), compreende-se como tendo tido uma função sacramental. Adão e Eva não foram proibidos de comer dela Inicialmente. Uma vez tendo desobedecido, foram proibidos porque tinham perdido o direito de participar do "símbolo sacramental", a árvore que falava da vida contínua em todos os aspectos e lhes dava segurança a respeito desta vida. A árvore ter este papel indicava que o homem e a mulher eram finitos; eles não possuíam vida e não foram assegurados da continuação dela em termos da essência independente de seu próprio ser, potencial e desejo. Eles eram dependentes de Deus Yahweh que, tendo os criado, deu-lhes a vida (Gn 2.7) e continuaria a ser sua fonte constante de vida. É interessante notar que "a árvore" é citada nas Escrituras como símbolo de vida, e em algumas circunstâncias, a garantia da vida (Sl 1.3; 52.8; 92.12; 128.3 [videira frutífera]; Pv 3.18; 11.30; Jr 11.16; 17.8; Dn 4.10; Ap 2.7; 22.2, 14,19). Comer da árvore é participar e ter a garantia da vida sem fim.
O jardim era o lugar do conhecimento. A árvore é citada como ez hadda'at (a árvore do conhecimento). O verbo yada (saber) traz várias nuanças específicas: conhecimento racional, consciência geral, conhecimento empírico, conhecimento de outros através da comunhão e do saber pessoal íntimo como quando o macho e a fêmea se unem sexualmente. Todas estas nuanças estavam, indubitavelmente, presentes no jardim. Quando se fala da árvore como "do conhecimento do bem e do mal", geralmente se entende que a referência não é à consciência geral de vários conceitos. O homem era ciente do que era bom; de fato, ele experimentava isto diariamente. Um fator essencial a ser compreendido é o fato desta árvore, cujo fruto foi proibido, ter representado a determinação expressa de Yahweh para o homem e a mulher. Eles foram feitos cientes da verdade de que Yahweh, exercitando sua soberania, lhes impôs limitações. Isso significava que existiam experiências e aquisições possíveis em que a humanidade não deveria estar envolvida ou das quais não se deveria apoderar. Deste modo, Deus Yahweh estabeleceu um limite para as experiências de vida dos seus vice gerentes. Eles, conhecendo e gozando da bondade que era deles no Éden, não deveriam, em orgulho e auto engrandecimento, desejar e procurar alcançar mais do que aquilo que lhes havia sido dado. Desejar, procurar alcançar e tomar o proibido resultaria em um esforço para ser como Deus (Gn 3.22). Isto, por sua vez, resultaria em alienação separação, destruição e morte. Yahweh, que sabia, não empiricamente mas objetivamente como o conhecedor de todas as coisas, o que era a morte, advertiu ao homem e à mulher da certeza dela, caso eles desejassem, buscassem e tomassem o proibido.
A esta altura, devemos considerar a pergunta que frequentemente é feita: Existia morte no Éden antes da queda? Meredith Kline entendia que já antes da queda a humanidade podia matar e matou vida animal, e que alguns animais comiam outros. Quando Deus Yahweh advertiu ao homem e à mulher sobre as consequências de se comer da árvore proibida, dizendo que eles poderiam morrer, eles devem ter tido uma consciência do que Deus quis dizer quando disse "morrer". "Morte", no sentido de separação, fim de um processo, e deterioração, foi experimentada no jardim. O sol e a lua funcionavam como controladores das estações; o homem e a mulher podiam comer frutos e sementes. Estes fatores, certamente, implicam em que as árvores e a vegetação seguiam ciclos de crescimento. Eles produziam flores cujas pétalas caiam (separavam); seus frutos amadureciam e eram colhidos ou caiam (separavam); quando o fruto era comido, o processo digestivo causava deterioração.
O próprio processo de vida envolvia separação no fim de um ciclo de crescimento; comer significava "consumir o que era"; a deterioração era necessária para que as pessoas e os animais pudessem viver. Prosseguir, no entanto, e dizer que o sangue, portador e personificação da vida (Lv 17.11), foi vertido é dizer mais do que o texto bíblico autoriza. Mas a possibilidade deste derramamento do sangue da vida, a separação do sangue, fôlego, e carne (morte física), o distanciamento de pessoas,a quebra da comunhão, a cessação do processo da vida e exercício do amor foram enfatizados: kî beyom 'akaleka mimmennû môt tamût (porque, no dia em que dela comeres –“morrer, tu morrerás”). Foi uma declaração de certeza absoluta.
Adão e Eva no Éden eram vice gerentes pactuais. Eles tinham grandes privilégios vivendo e servindo na "casa do trono e domínio real" de Deus Yahweh. Mas eles não deveriam ser como Deus, ou desejar e buscar ser "deuses". Yahweh colocou limitações sobre eles e diante deles. Este fato era da própria essência de um pacto feito unilateralmente por um Mestre soberano. Adão e Eva eram limitados no uso dos frutos do jardim; eles receberam parâmetros para a sua comunhão com Yahweh. Eles receberam instruções a respeito da vida familiar e social; o homem deixaria seus pais, quebraria aquela ligação íntima a fim de apegar-se intimamente à sua esposa.
O homem seria uma só carne com uma mulher para toda sua vida. Mais, o homem foi feito ciente de que a companheira, ajudadora, a parceira geradora de vida, não poderia ser tomada do mundo animal (Gn 2.20). Os vice gerentes, em comunhão e serviço pactual com Yahweh, receberam a oportunidade de responder a seu Senhor de maneira tal que pudessem exercitar a liberdade dentro das limitações estabelecidas , demonstrar suas prerrogativas e potencialidades reais dentro das diretrizes recebidas, e gozar da bondade (bem-aventurança) e paz que a vida edênica e o serviço ofereciam. Este não foi um período de experiência; o homem e a mulher foram convocados e rec eberam a oportunidade de ser o que Yahweh os tinha feito para ser.
Não existia um pacto de obras, um arranjo pelo qual o homem e a mulher se tornariam meritórios pelo fazer ou trabalhar. Eles não tinham nada para merecer; pela bondade de Deus eles eram seu povo pactual, membros de sua família real, dotados com potenciais e possibilidades de ser agentes efetivos e produtivos no reino cósmico que estava para revelar-se de várias formas, constantemente enriquecedoras. Esta revelação aconteceria à medida que Deus Yahweh a dirigia e os vice-gerentes cooperavam cumprindo seu mandato pactual tríplice.
[Aqui, Van Groningen, assim como Robertson, contradizem a terminologia da Confissão de Fé de Westminster. Entretanto, em meu artigo sobre o pacto proponho a leitura do Pacto de Obras como parte do Pacto da Criação, harmonizando a leitura. É importante lembrar que dentro da tradição reformada existem diferentes posições, sendo a CFW uma delas –Prof. Mauro.]
Adão e Eva eram os representantes pactuais de Yahweh. Como vice gerentes, eles representavam seu Rei soberano no seu reino cósmico. Seu status, prerrogativas, responsabilidades e bênçãos eram tais que eles, de fato, ocupavam a mais alta posição e recebiam privilégios reais como nenhum outro ente criado. Eles receberam responsabilidades sobre cada faceta da vida. Eles deveriam governar com Yahweh sobre tudo o que tinha sido criado. De fato, eles estavam na mais alta posição possível no reino cósmico de Yahweh. Todos os aspectos da criação, todas as leis e todas as funções, conforme ordenado e estabelecido por Deus Yahweh, estavam no lugar.
Adão e Eva foram designados, não para serem co-criadores, mas vice gerentes com Yahweh. Deste modo, Deus preparou e iniciou o processo de revelar seus desígnios maravilhosos para o reino cósmico e dentro dele. Deus estabeleceu iniciou o processo da história.
Satanás e o Mal
O texto bíblico oferece pouca informação sobre a origem de Satanás e a fonte da sua habilidade, poder e influência. O texto bíblico também não oferece informações explícitas a respeito da origem do mal. A Bíblia fala, frequentemente, da presença do mal e seus efeitos, assim como de Satanás e suas atividades e os efeitos destas. Satanás não é citado diretamente em Gênesis 3.1-15. De acordo com o texto, a serpente conversou com Eva (Gn 3.1-2, 4). Deus se dirigiu à serpente e falou diretamente com ela quando disse que a serpente seria amaldiçoada sobre todos os animais, rastejaria sobre sua barriga e comeria pó todos os dias da sua vida (Gn 3.14).
A serpente, com sua natureza sutil, havia cooperado com o tentador e, por essa razão, foi amaldiçoada. Mas o que Deus prosseguiu dizendo sobre a inimizade, esmagamento e ferimento, embora aplicado à serpente, foi dirigido mais especificamente àquele que havia usado a serpente. A relação íntima na tentação entre a serpente e o tentador é enfatizada quando as Escrituras falam de Satanás como a serpente (Ap 12.9, 14-15; 20.2). Isaías, indubitavelmente, fez a conexão direta quando falou do dragão (leviatã), a serpente sinuosa que seria punida (Is 27.1).
A palavra satan (satanás) não aparece frequentemente na Bíblia. O texto informa que Satanás apareceu quando Deus se reunia em conselho com seus servos angelicais (Jó 1.6-12; 2.1-7). Davi requereu que Satanás se colocasse à mão direita dos seus inimigos perseguidores como o adversário ou acusador (Sl 109.6). É interessante notar que Davi era bem ciente de Satanás e seus meios. Zacarias, na quarta visão, viu Satanás na corte celestial acusando a Josué, o sumo sacerdote (Zc 3.1-2).
Algumas outras referências são Mt 4.10; Mc 1.13; Lc 4.8; Mt 16.23; Mc 8.33; Mt 16.23; Mc 3.23, 26; Lc 11.18; Mc 4.15; At 5.3; 1 Co 7.5; 2 Co 2.11; At 26.18; 2 Co 12.7; 1 Ts2.18; 2 Ts 2.9; Lc 22.31; Lc 22.3; Jo 13.27; 1 Tm 5.15; Ap 2.24; Ap 12.4.
Satanás, de acordo com as Escrituras, é o tentador mestre; ele é o adversário e acusador do povo de Deus; ele é o grande oponente de Jesus, o Messias; ele é aquele que será expulso para sempre (Jo 12.31; Ap 20.10) depois de ser amarrado (Ap 20.2) e esmagado (Rm 16.20). As Escrituras também deixam claro que Satanás será continuamente ativo, a um certo grau, até ser lançado finalmente no inferno (1 Pe 5.8). De fato, existe muita prova escriturística para dizer que foi Satanás quem tentou Eva e Adão no Éden, quem se opôs a Deus e buscou ganhar todo o cosmos para si mesmo.
A origem de Satanás nunca é discutida diretamente ou mencionada indiretamente nas Escrituras. Deus não criou Satanás como Satanás. As Escrituras são enfáticas na negação de que Deus seja a fonte do pecado, do mal e de Satanás que personifica o mal. Deus odeia o pecado. Ele, como um Deus santo, não tolerará o mal. Isto faz com que a questão sobre a origem de Satanás se torne muito difícil de ser respondida. Existem algumas referências bíblicas que sugerem quem era Satanás e o que se tornou. Satanás era um dos anjos a quem Deus criou quando os céus foram criados. Ele poderá ter sido um dos arcanjos como Miguel, o guerreiro defensor (Jd 9; Ap 12.7; ver também Dn 10.13, 21; 12.1) e Gabriel, o mensageiro (Dn 8.16; 9.21; Lc 1.19, 26). O nome original de Satanás pode ter sido Lúcifer (Is 14.12), mas isso não pode ser confirmado. Das suas atividades pode-se concluir que ele era muito instruído, poderoso e capaz como administrador. Ele é tudo isto em virtude de Deus tê-lo criado assim. Parece apropriado, então, considerar Satanás como um arcanjo que recebeu a tarefa de ser o administrador entre a multidão de anjos para as atividades deles. Tal arcanjo administrador tinha um papel e estava numa posição em que pôde desafiar a preferência de Deus Yahweh em fazer de Adão e Eva seus vice gerentes no reino cósmico. Ao desafiar a Deus, em autoconfiança e orgulho, ele se tornou o adversário de Deus; ele se tornou Satanás.
A origem de Satanás, a rebelião e o caráter dele dão uma resposta à questão da origem do mal. A maioria dos estudiosos bíblicos e dos teólogos concordam que o mal surgiu com a rebelião de Satanás. Mas, existem vários problemas envolvidos nesta resposta. Um dos problemas é com relação ao papel de Deus em relação à origem do mal. Louis Berkhof afirmou, forte e corretamente, que o mal moral no mundo é o pecado, e Deus não pode ser considerado como o autor deste no sentido de ser Deus a causa do pecado. Berkhof apelou às passagens bíblicas (Dt 25.16; 32.4; Jó 34.10; Sl 5.4; 11.5; 92.16; Is 6.3; Zc 8.17; Lc 16.15; Tg 1.13).
Um outro problema relaciona-se à origem do mal/pecado dentro de um ser criado por Deus que não era mau, e sim, parte de um cosmos muito bom. Esse problema não pode ser resolvido baseado em qualquer ensino bíblico explícito. Tudo que pode ser dito é que Satanás, criado como arcanjo principesco, recebeu muitos dons quando foi criado. Satanás tinha a potencialidade e a liberdade como criatura de Deus para se rebelar contra Deus, para se opor a ele em seu reinado, e para buscar para si o controle do reino cósmico de Deus. Das Escrituras só se pode deduzir que o pecado e o mal surgiram no mundo angelical. Jesus Cristo provavelmente estava se referindo a isto quando disse que o diabo era um assassino desde o começo (Jo 8.44). João se refere à origem do pecado e do mal quando escreveu que Satanás peca desde o começo (1 Jo 3.8). Isto pode ser dito com certeza: Satanás apresentou a Adão e Eva o pecado e o mal e, assim o introduziu no mundo bem feito e ordenado da humanidade.
Uma terceira questão que tem ocupado muitos exegetas e teólogos é a relação entre o pecado e o mal. Geralmente o mal tem sido considerado em duas categorias. O mal moral ou espiritual é a condição da criatura de Deus que, tendo sido criada como boa, se rebela e torna-se um adversário rebelde. O ódio, a inveja e a malícia controlam a mente, o desejo e o coração. Os relacionamentos estabelecidos em amor para durarem a vida toda são desfeitos, são quebrados. Os deveres e responsabilidades são rejeitados e planos e métodos contrários são imaginados e levados a efeito. O engano e a mentira prevalecem nos corações dos maus.
Já o mal natural ou mal físico se refere, antes de tudo, às consequências do mal moral. O esfacelamento na vida de várias formas é visto como sendo experiências ruins (ou más). As privações, sejam elas na natureza como uma falta de chuva ou de luz solar, ou sejam uma falta de saúde ou das necessidades para a vida normal, são chamadas de males. Guerras e desastres como terremotos ou tempestades de vento também são considerados males. O mal moral tem sua origem em fontes que não são Deus. Mas Deus ocasiona e/ou controla as consequências do mal moral, o mal natural e físico. Nunca devemos nos esquecer que, sob o controle de Deus, Satanás e as forças demoníacas podem causar o mal natural. As ações pecaminosas na vida também podem resultar em mal natural e físico. Mas, devemos nos lembrar em todo o tempo que Deus é o Mestre sobre a morte, sobre a vida, em todas as suas exigências e vicissitudes. Deus fala repetidamente, através de seus porta-vozes e escritores inspirados, que ele trará, e traz mesmo, a espada, a fome, a pestilência e a destruição, frequentemente por intermédio de nações designadas. Considere a advertência de Moisés quanto ao fato de que Yahweh traria maldições sobre o povo escolhido se e quando ele se tornasse moralmente mau (Dt 11.17-18; 27.15-26; 28.15-68).
Considere, também, a pergunta retórica de Amós: "Sucederá algum mal (ra’a) à cidade, sem que o SENHOR o tenha feito?" (Am 3.6 RA). O conceito de pecado é inseparável do mal. O pecado é um ato de desobediência expressa contra a autoridade legítima. Pecados são atitudes, pensamentos e ações de desobediência. O pecado tem suas raízes no mal; o mal moral se expressa através de atos de desobediência, rebelião, ódio, inveja, destruição e assassinato. O mal e o pecado penetraram no Éden; isto não aconteceu porque eram entidades, forças ou influências objetivas ou essenciais. Suas origens estão nos aspectos da criação que são espirituais, morais e livres - anjos, querubins e seres humanos. Deus Yahweh colocou Adão e Eva no Éden. Satanás tinha livre acesso ao Éden em virtude de ser anjo e da sua posição no cosmos. Satanás, por não ter recebido o status e as prerrogativas reais no Éden ou em relação ao cosmos, não foi capaz de introduzir o mal e o pecado dentro dele diretamente. Ele fora lançado do céu como seu centro de atividade porque Deus Yahweh não tolerava o mal que Satanás havia se tornado em seu ser, atitude e atividades. Como o banido, Satanás se empenhou em ganhar o controle do cosmos e, assim ganhar uma esfera de ação objetiva na qual pudesse dar expressão à sua natureza corrupta e exercer seus poderes satânicos (adversários) e maus. A maneira de obter controle sobre todo o cosmos era entrando no Éden.
Satanás percebeu que para ganhar a influência no Éden e, consequentemente, introduzir o mal e o pecado dentro dele e, desse modo, em todo o cosmos, ele teria que ganhar o controle e a influência penetrante sobre os vice gerentes edênicos designados e qualificados por Deus Yahweh. Satanás entrou no Éden como um intruso maligno com o projeto de se entronizar e se tornar o mestre dos seres humanos e do reino cósmico sobre o qual eles haviam recebido o mandato de zelar, cultivar e governar.
O Reino Parasita
Gênesis 3.1-7 registra o encontro entre a serpente/Satanás e Eva e Adão. Este relato, embora breve, é um registro confiável daquilo que de fato aconteceu num dado momento (precisamente quando, ninguém sabe) no Éden. Paulo ratificou autoritativamente este relato registrado quando escreveu aos coríntios que Eva havia sido enganada pela astúcia da serpente (2 Co 11.3).
Satanás iniciou com uma pergunta formulada astuciosamente: 'ap (sim ou e). O termo é corretamente interpretado pela Bíblia na Linguagem de Hoje como "É verdade". Usado retoricamente, tinha a intenção de levantar uma questão e, desse modo, uma incerteza. Satanás também usou uma frase ambígua quando disse miccol ez (de todas, i.e., qualquer árvore). Foi um exagero com a intenção de aumentar a incerteza; a pergunta, no entanto, como interpretada por Eva, a induziu a uma resposta e, desse modo, a conversa foi iniciada. A resposta de Eva de que todas as árvores, exceto uma, estavam disponíveis a eles, deu a Satanás a oportunidade precisa para fazer uma acusação contra Deus Yahweh. Em reposta à última declaração da mulher, de que eles não poderiam comer da árvore nem tocá-la, Satanás fez uma declaração dupla.
Ambas eram mentiras e acusações contra Deus; ambas também afirmavam, implicitamente, que Eva tinha a ganhar, não perder, se ela comesse. Ela não morreria (perderia a vida), mas se tornaria mais completamente viva e segura disto porque comendo, se tornaria como Deus. Desse modo, ela estaria em posição de ganhar um caráter divino e a vida plena e sempiterna de uma deidade. Essas possibilidades brilhantes foram colocadas diante dela de tal maneira que Yahweh foi denunciado, implicitamente, como uma deidade egoísta e ciumenta e Satanás foi exibido como um aspirador do bem, inteligente, compreensivo e magnânimo. Satanás fez Eva pensar que o fruto, atraente em aparência, quando comido iria le haskîl (tornar sábio, eficiente, bem sucedido).
Um Deus mesquinho havia contido o prazer e o sucesso dela. Ela comeu; ela deu a Adão e ele comeu (Gn 3.6). Eles, então, perceberam que não haviam obtido prazer e sucesso como deuses, mas, como seres humanos que duvidaram e desobedeceram, haviam perdido a dignidade e segurança dadas por Deus. Eles entenderam que estavam nus; eles foram expostos diante de Satanás, um diante do outro, diante do cosmos e diante de seu Deus. Eles haviam quebrado o seu relacionamento com Yahweh, com o cosmos e um com o outro. A transgressão, o fracasso, a desobediência, o pecado e o mal lhes haviam sido apresentados e eles sucumbiram. Eles se tornaram quebradores do pacto; perderam seu senso de serem governadores reais com Deus Yahweh. Eles tomaram do cosmos (folhas de figueira) sobre o qual eles deveriam governar, e se esconderam atrás delas. Desse modo, abdicaram do "trono" que Deus lhes havia dado; tornaram-se dependentes das folhas (de forma alguma duradouras) e, através do seu uso, separaram-se um do outro e do seu Deus pactual. Tornaram-se indivíduos isolados e perderam o sentido de unidade e harmonia entre eles mesmos, entre eles e o cosmos e entre eles e Deus. A rendição de Adão e Eva a Satanás foi completa.
Seu pecado contra Yahweh também o foi. Quando seguiram as sugestões enganosas de Satanás, seus corações foram corrompidos; o pecado e o mal já tinham uma fonte ou raiz no Éden. Satanás obteve uma vitória. Ele ganhou o domínio sobre os vice gerentes pactuais de Yahweh e, por isso, sobre o cosmos. Satanás teve sucesso no estabelecimento do seu reino, trono e domínio substitutos.
Ele estabeleceu seu reino no cosmos. Mas este era um reino parasita.Usamos o termo "reino" para nos referir ao fenômeno todo que está sob o poder e influência satânicas, incluindo o próprio Satanás. O conceito de reino, como usado aqui, inclui quatro aspectos: o poder comandante; a manifestação deste poder; o lugar de onde este poder é manifestado; e o domínio que é influenciado. O último inclui todos os agentes, poderes e meios como também os objetos e áreas em que o poder satânico é exercido.
A frase "reino de Satanás" não aparece nas Escrituras. Mas referências a ele podem ser encontradas em termos e frases como poderes [ou potestades] (Rm 8.38; Ef 6.12; Cl 2.15), autoridades e forças espirituais do mal (Ef 6.12). Estes termos se referem aos aspectos da esfera que está em oposição direta a Yahweh e seu Cristo. Apocalipse faz uma referência a outro reino que não o de Deus ou de Cristo, que é dado para a besta ou é a besta (um representante de Satanás) (Ap 16.10; 17.17). Quando Satanás tentou Jesus, ele lhe ofereceu todos os reinos do mundo, dando a entender que ele os tinha sob seu controle e serviço. Ele deixava subentendido que seu reino incluía todos os reinos do mundo. Jesus não contendeu com Satanás quanto à sua afirmação implícita a respeito do seu reino, mas respondeu que ele só adoraria, só louvaria (i.e., reconheceria e serviria) a Deus Yahweh e seu reino (Mt 4.8-10).
As mensagens proféticas, que são refletidas no Novo Testamento, do qual são também as fontes, se referem ao poder, governo e influência satânica como representados por vários reinos poderosos da terra (Dn 2.4, 7, 11; ver também Ez 16-17, 29). Nos salmos, nós lemos dos poderes e influências formidáveis manifestados por pessoas más, que se opunham ao povo de Yahweh e representavam o poder do mal e a influência de Satanás (Sl 2.1-5; 10.2-4; 22.12-13, 16; 37.10-14, 17, 20).
Contrastando com esses poderes e influências satânicas, o salmista cantou do reino de Yahweh (Sl 22.28; 103.19; 145.11-13). As influências tremendamente poderosas de Satanás são citadas em Jó; ele pode dirigir as forças da natureza, incutir o roubo e a guerra nos povos. Ele pode se opor ao povo de Yahweh através da influência sobre seu rei (1 Cr 21.1).
O reino de Satanás, no entanto, é um reino parasita. Um parasita é um organismo que é totalmente dependente de outro organismo vivo. Um parasita não tem os meios e a capacidade de existir por eficácia dos seus próprios meios e métodos. O visgo só pode viver em uma árvore e viver dela; ele não pode tirar sustento para a vida somente do solo e do ar. Os parasitas podem ser prejudiciais para o ser do qual se alimentam e, em muitos casos, causam sua morte (e.g., vermes intestinais nos humanos, vermes nematóides nos cachorros).
O reino de Satanás é parasita porque não pode existir independentemente. Ele é total e completamente dependente do reino cósmico de Yahweh. Satanás, como um ser criado, não é autônomo; ele tira todos os aspectos essenciais da sua existência e atividades da sua fonte, o Criador e Governador do reino cósmico. Porque Satanás é, desse modo, totalmente dependente, tem sido dito que Deus é responsável por ele, pelo mal e pelos seus efeitos. As Escrituras negam isto; mas permanece o fato de que Satanás e seu reino dependem de Yahweh e de todo o seu reino cósmico para existir e manter seu reino parasita. As Escrituras revelam este fato quando demonstram que Satanás tem limitações; a ele é dado um espaço; ele só pode ir até onde o Deus soberano indica.
A situação que se desenvolveu no Éden quando a serpente/Satanás enganou a Eva e a Adão (e eles sucumbiram à sua influência) e, por mérito da posição real de Adão e Eva como vice gerentes, foi Satanás ser capacitado para iniciar seu reino parasita dentro e dependente do reino cósmico de Deus. O rei parasita, Satanás, ao ganhar o controle do coração e da vida de Adão e Eva, no próprio coração do reino cósmico, pôde estender sua influência através de todo o reino cósmico. Em outras palavras, o poder e a influência satânicas podiam tornar-se e de fato tornaram-se penetrantes. Desse modo, o rei no cósmico de Deus tinha dentro de si e sustentava os próprios meios que buscavam destruir e anulá-lo.
Assim temos uma ideia bíblico teológica do desejo de Satanás e sua sedução dos vice gerentes da criação. Na próxima aula veremos o Protoevangelho, a promessa de Deus para dar continuidade ao pacto da criação e seus mandatos.